05. Pesadelos nunca morrem.
POV Soluço
Acordei com gritos ricocheteando nas paredes do meu quarto, Merida se debatia na cama pedindo socorro. O primeiro a chegar foi meu pai, que tinha uma vela na mão e um machado no outro.
“O que foi? O Breu voltou?” Ele perguntou olhando para os lados, alarmado, enquanto Banguela me olhava preocupado, meio acuado no canto do quarto.
“Não. Ela só está tendo um pesadelo.” Respondi, tentando segurar os braços de Merida e penetrar na mente dela para saber com que ela estava sonhado.
Usei meu corpo para prendê-la no colchão e usei todas as minhas forças para ligar minha mente com a dela. Demorou um pouco, mas logo pude ver o pesadelo dela como se fosse o meu. Merida estava sendo perseguida por um urso de olhos amarelos. Apesar de todo esse tempo, Mor’du ainda a assustava, pois a fazia lembrar-se da forma ruim de como ela tratou sua mãe e acabou decepcionando-a.
“Merida, acorda...” Chamei, sacudindo-a. “Meu amor, acorda...”
Merida continuou a gritar e eu ouvi a porta da frente ser arrombada, em seguida Heather e Astrid entraram no meu quarto com espadas e tochas em mãos. Imediatamente elas entenderam minha situação.
“Vá buscar o balde.” Astrid ordenou e Heather a obedeceu, largando sua espada e descendo às pressas para o andar de baixo. “É melhor tapar a boca dela...”
Antes que eu pudesse impedir, Astrid amordaçou Merida, que mesmo assim continuou gritando como se estivesse sem nada na boca, franziu a testa e meu pai desceu para acalmar os vizinhos que começavam a se aglomerar em nossa porta.
“Afasta!” Heather gritou e, tarde demais, vi o balde de água ser jogado na direção da cama.
Merida acordou imediatamente, olhando para os lados assustada, enquanto eu piscava e tentava não gritar por causa da água gelada.
“Você está legal, ruiva?” Astrid perguntou tirando a mordaça de Merida, e usando ‘legal’ ao invés de ‘bem’, por que a ruiva não gostava da última palavra.
“Sim, mas sinto como se tivesse mergulhado no mar do Ártico.” A ruiva confessou confusa.
Heather riu.
“Culpada.” Ela admitiu e só então Merida percebeu o que houve.
Saí de cima da ruiva e sentei no colchão molhado, puxando minha ruivinha para meus braços. Heather recolheu sua espada do chão e seguiu para a escada com Astrid em seu encalço.
“Obrigado, meninas.” Agradeci, fazendo-as parar e se virarem, com um sorriso igualmente travesso no rosto.
“Disponha, mas confesso que achei que usaria a água para apagar outra coisa...” Heather disse com um sorriso malicioso, que me deixou confuso.
“Outra coisa?” Perguntei e Merida bateu em minha testa.
“É... um certo... fogo.” Astrid explicou e eu pisquei algumas vezes até conseguir entender.
“Ora, suas...” Comecei a dizer e atirei um travesseiro na direção delas, que desceram as escadas rindo.
Meu pai colocou a porta de volta no lugar e subiu lançando um olhar atencioso para Merida, que estava me ajudando a substituir as peles que usávamos como colchão.
“Está melhor, princesa?” Ele perguntou, visivelmente preocupado.
“Sim, apesar de me sentir esgotada.” A ruiva confessou, suspirando.
“Acha que pode dormir tranquilamente?”
“Acho que sim,, normalmente é só um pesadelo por dia.”
“Por noite.” Corrigi, substituindo os travesseiros.
“Einh?” Merida e meu pai indagaram juntos.
“Você dorme de noite e não de dia. O certo seria ‘um pesadelo por noite’.” Expliquei, fazendo a ruiva revirar os olhos.
Olhei para o canto do quarto e encontrei o olhar de Banguela, que piscou e voltou a dormir tranquilamente. Meu pai voltou para cama e eu fui para minha, puxando-me minha ruiva para meu peito, e rezando para termos uma noite tranqüila.
***
Acordei no meio da noite ouvindo, novamente, gritos. Só quando eu vi a ruiva me encarando preocupada, percebi que os gritos eram meus, e não dela, Merida não falou nada, apenas me abraçou, passando conforto e segurança para mim. Ela me deu beijo tranquilo e eu caí no sono agarrado a ela. Quando acordei definitivamente, só ouvi o som de Banguela em cima do meu telhado, chamando-me para nosso passeio matinal. A ruivinha, ainda dormia e eu fiquei na dúvida se a acordava ou não. Arrumei-me silenciosamente e peguei uma bolsa cheia de sardinhas secas, que seriam o café da manhã de Banguela. Já estava prestes a descer as escadas, quando ouvi uma voz sonolenta atrás de mim:
“Vai aonde?”
Girei e vi a ruiva sonolenta com o cabelo mais rebelde que o normal.
“Banguela e eu vamos passear, quer vir junto?” Antes de mesmo de que terminar, Merida já estava de pé procurando seus sapatos.
A ruiva penteou rapidamente seus cabelos embaraçados e calçou suas galochas, prendendo sua capa preta e pegando seu inseparável arco. Deixamos a casa de braços dados e Banguela pôs a língua para fora ao nos ver juntos.
“Bom dia, amigão. Desculpe te acordar ontem à noite.” Desculpei-me, enquanto ajudava Merida a montar.
“Sem problemas.” Ouvi uma voz grave responder em minha mente, de alguma forma eu soube que aquela voz era Banguela.
Congelei onde estava. Desde quando eu achei meu cajado, os pensamentos se tornaram claros para mim. Primeiro foi com os pesadelos e depois com as pessoas normais, só que aquilo nunca ocorreu com nenhum animal ou um dragão.
“Eu te ouvi! Cara eu te ouvi!” Exclamei, pulando, Merida e Banguela me encaram confusos.
“Ele pirou?” Banguela se perguntou.
“Ele está bem?” Merida se perguntou, franzindo a testa.
“Eu estou ouvindo o Banguela! Eu posso ouvir os pensamentos do Banguela!” Expliquei e Merida me deu um largo sorriso.
“Legal...” Ela disse, rindo.
“Espera você pode... Já que assim, eu gostaria de dizer que não gosto do peixe que você me trás.”Banguela disse, fazendo aquela cara de tédio dele.
“E por que não disse antes?” Briguei, chateado.
“Hã... talvez por que não pudesse me ouvir, gênio?” Banguela respondeu sarcasticamente, me deixando surpreso pela grande presença de humanidade nele.
“Tá, então você prefere o quê? Sardinha ou linguado?” Perguntei, erguendo uma sobrancelha e Banguela fingiu refletir por um momento.
“Linguado.”
“Qual o problema da sardinha?”
“São pequenas demais. Minhas garras são maiores que elas.” E ao dizer isso, Banguela colocou suas garras para fora, me permitindo ver que elas eram realmente muitos maiores que as sardinhas.
“Ok, então nada de sardinha, certo?”
“Sem sardinhas.” Banguela concordou e Merida riu.
“O que foi?” Perguntei, olhando para a ruiva.
“A primeira conversa mental de vocês é sobre peixes?” Merida questionou, rindo.
“Seria a sua também, se seu amigo te desse sardinhas como almoço, durante um mês inteiro.”Banguela revirou os olhos “Fala sério, sardinha devia ser petisco.”
“Então toma um petisco.” Falei virando minha bolsa de cabeça para baixo e deixando as sardinhas caírem no chão.
Banguela se lançou na direção delas, fazendo Merida se agarrar com força na cela. Eu ri, fazendo o rosto da ruiva se contorcer numa careta de desgosto. Montei no Fúria da Noite, que já havia devorado seu petisco e Merida passou os braços em torno de mim.
“Prontos?” Perguntei, segurando as rédeas com firmeza.
“Prontos.” Merida e Banguela disseram em uníssono.
Meu dragão levantou vôo, fazendo o ar assoviar em nossos ouvidos, à medida que íamos em direção ao amanhecer. Meu passeio com Merida foi incrivelmente agradável, sobrevoamos o Mar Oriental, o Punho de Pedra, as Florestas Sulistas e a Enseada de Berk. Eu esperava encontrar Astrid com a Tempestade ou o Melequento com o Dente-de-Azol, mas nenhum dos dois apareceram. Voltamos para a vila e pousamos em frente ao salão comunal, que estava estranhamente vazio para o horário.
“Onde estão os outros?” Perguntei para Cabeça-Quente, que estava enfiando bolo de carne no nariz de seu irmão.
“Foram ver um novo dragão.” A garota respondeu, baixando a mão suja e fazendo seu irmão me olhar irritado.
“Novo dragão?”
“É um bicho lá que lembra uma galinha e que só aparece de noite.” Cabeça-Quente se virou para o seu irmão. “Qual é o nome que Anciã deu?”
Cabeça-Dura fungou, puxando o bolo de carne para o estômago. Merida fez uma cara de nojo e me olhou parecendo questionar a insanidade dos vikings.
“Cocatriz.” Cabeça-Dura respondeu, passando a mão pelo nariz.
“E o que é um Cocatriz?” Merida perguntou interessada.
“Olha para minha cara. Você acha que eu sei?” Cabeça-Dura questionou apontando para si próprio. Em seguida, virou-se para a irmã. “Mais bolo de carne, irritante.”
Cabeça-Quente sorriu, pegou um punhado de bolo de carne e enfiou no ouvido do irmão, fazendo-o rir. Por algum motivo estranho, aquilo parecia ser divertido para eles. Só queria saber como iriam tirar aquilo do ouvido do garoto.
“Dragão!” Um viking gritou e por instinto todos nos abaixamos.
Tempestade, o dragão fêmea de Astrid, destruiu as dobradiças da porta principal e rolou até o meio do salão, parando em cima da grande fogueira dos deuses. Astrid surgiu de trás de Tempestade, usando seu novo traje de vôo feito de couro e pele de carneiro, com adornos de caveiras de ferro. Ela tirou o capacete e ergueu as mãos num jeito tranquilizador, enquanto nós a encarávamos, assustados.
“Tudo bem, pessoal. Só foi um pouso de emergência. Não tem porquê se preocuparem.” Ela disse, calmamente, mas o susto permaneceu congelado nos rostos dos vikings.
“Era a fogueira dos deuses.” Uma viking sussurrou, assustada.
Astrid gemeu e se virou, vendo seu dragão se levantar, revelando assim as cinzas e os tocos de madeira destruídos. A fogueira havia sido acesa em homenagem aos deuses, na época que nossos ancestrais se instalaram em Berk. Sempre quando as chamas se apagavam algo ruim acontecia, ou éramos atacados por um Fúria da Noite, ou algum praga destruía nossas colheitas, ou nosso líder morria ou vinha uma nevasca monstruosa. Agora, se quando as chamas se apagavam algo ruim acontecia, imagine o que deveria ocorrer quando a fogueira era destruída.
“Ah, mas que desgraça de Loki!” Astrid rugiu, atirando com violência seu capacete no chão. “Aquela maldita besta não podia ter me lançado para outro lugar?”
“Santo Odin, o que será de nós?” Um viking perguntou, enterrando o rosto nas mãos.
“Melhor eu colocar mais tábuas no telhado.” Outro comentou, correndo para fora do salão.
“Será que devo começar a guardar suprimentos?” Uma viking se perguntou, apoiando o queixo na mão.
Logo o salão comunal se transformou numa zorra. Todos faziam planos, como se o mundo fosse acabar em meia hora ou como se Odin fosse aparecer para nos castigar. Vários vikings já haviam retornado às suas casas, Astrid não parava de se lamentar e chutar tudo o que havia pela frente. Até Cabeça-Dura e Cabeça-Quente começavam a brigar por causa do “fim do mundo”.
“Então, vou ficar com seu martelo.” A garota disse, empurrando o peito do irmão. “Se o mundo vai acabar, você não precisará mais dele.”
“Certo, mas eu fico com sua sobremesa até você morrer.” O garoto retrucou cruzando os braços. “Ei, espera, e se eu morrer primeiro?”
Merida me fitou, como se gritasse: Faça alguma coisa. Desviei o olhar para a multidão e tentei pensar em algo, mas nada me ocorreu. Então, resolvi improvisar.
“Silêncio!” Gritei, fazendo rajadas de ar entrar no salão e sacudir os destroços da fogueira. Os vikings me olharam desesperados, como se eu fosse sua salvação. “Certo, me escutem. A melhor coisa a se fazer agora é manter a calma.”
“Manter a calma?” Um viking chamado Rags questionou irritado. “Como você pede calma numa hora dessas, Soluço?”
“Se não tivermos calma as coisas só vão piorar.” Retruquei, fazendo-o ficar mudo. “Relaxem, sigam sua rotina, que eu falarei com meu pai e discutiremos sobre o ocorrido.”
Os vikings se entreolharam receosos e um calafrio percorreu minha espinha, fazendo-me tremer levemente. Algo ruim estava por vir, mas eu não podia saber o quão ruim era.
***
Vamos dar um jeito. Foi a única coisa que meu pai disse sobre a destruição da fogueira. Segundo ele, não adiantávamos nos preocupar, pois os deuses não seriam cruéis conosco. Afinal, fora apenas um acidente causado por uma besta que, pela lógica do meu pai, seria castigada no nosso lugar.
A tal besta, era o Cocatriz, que de acordo com Astrid, era um mistura de ave com dragão. Ele tinha escamas negras, garras ligeiramente encurvadas e olhos brancos como a neve, não podia ser ferido por nada e cuspia enxofre negro, que corroia tudo ao seu redor. Nunca ouvimos falar de um dragão assim, então achei melhor investigar. Só que havia um problema: a minha linda ruivinha. No outono que fui a Dunbroch, quase não a vi e passamos pouco tempo juntos, o que me fez prometer a ela que não desgrudaríamos no verão. E apesar de eu saber que ela amaria vir comigo, achei melhor darmos um tempo para o perigo e desfrutar a paz, enquanto ainda podíamos.
“Tome cuidado e mantenha a cabeça abaixada.” Aconselhei a Astrid, que estava afivelando sua cela.
Ela, os gêmeos, Melequento e Perna-de-Peixe, iriam coletar mais informações sobre o Cocatriz e tentar domá-lo. Certamente, alguém não voltaria para casa, mas era um risco que eles estavam dispostos a correr.
“E lembre-se que os trajes de vôo só são imunes ao fogo, o enxofre e ácido podem corroê-los.” Comentei e Astrid me fitou, chateada.
“Eu sei me cuidar.” Ela resmungou irritada. O humor dela não andava muito bom desde o incidente com a fogueira.
“Eu sei que você sabe, mas eu me preocupo. Aquele não é um dragão comum, Astrid.” Expliquei e ela apenas me empurrou, criando um espaço maior entre nós.
Astrid montou em seu dragão e agarrou-se com uma mão a cela, enquanto sua mão livre afagava o dorso de Tempestade. Ela estava irritada, chateada e preocupada, porém seus pensamentos estavam mais claros que a água. Astrid estava com medo. Não por causa do dragão, mas o que poderia acontecer conosco, caso os deuses viessem a nos punir.
“Nós vamos ficar bem.” Assegurei, fazendo ela me fitar confusa. “Os deuses não serão injustos.”
Astrid desviou o olhar para o céu, fitando as nuvens negras que se aproximavam. Toquei meu cajado em forma de bracelete e evoquei os ventos quentes do sul. Bem lentamente, as nuvens começaram a se afastar e Astrid me olhou intrigada.
“Merida e eu estamos aqui. Juntos, podemos enfrentar qualquer coisa. Nem que seja a ira de Asgard.” Afirmei, em seguida olhei para a ruiva, que conversava calorosamente com os gêmeos, rindo de algo que eles disseram. Ela olhou de volta e sorriu, fazendo meu coração bater acelerado.
“Achei que você fosse esperto, Soluço.” Astrid disse calmamente, desviando minha atenção para ela. “Não estou com medo dos que os deuses possam fazer a mim. Estou com medo do que eles possam fazer com vocês dois.” Ela olhou para Merida e sorriu. “A ruiva é uma ótima garota. Não quero vê-la jazendo num campo de batalha.”
Algo cruzou o olhar de Astrid e ela se inclinou na minha direção, agarrando minha camisa e me erguendo do chão.
“Se você não cuidar dela, vou te apresentar ao meu machado.” Ela sibilou em meu ouvido e em seguida me soltou bruscamente e sorriu, como se nada tivesse acontecido. “Até mais tarde, Solucinho.”
Tempestade ergueu vôo, sendo seguida pelos outros dragões. As crianças da tribo de Alvin soltaram gritos de exclamação e deram tchau para os eles. Astrid olhou para trás e sorriu, acenando na minha direção, acenei de volta, percebendo que a paixão que havia entre nós, tinha se transformado em irmandade.
***
“Erga mais um pouco.” Merida pediu, beliscando a corda do arco, que na verdade era seu cajado.
Revirei os olhos e suspendi mais um pouco o escudo que estava segurando. Depois de passarmos a manhã inteira de bobeira, Merida resolveu praticar um pouco de tiro ao alvo. Juntando o útil ao agradável, deixei Banguela nas mãos de Heather e levei Merida para meu esconderijo secreto em Berk. Com não tínhamos alvos, resolvemos improvisar com um escudo, que eu tinha que segurar e afastar toda vez que a ruiva o acertava.
“Ruiva... a gente já está fazendo isso a mais de três horas.” Reclamei, amuado.
Merida revirou os olhos e ergueu o arco, disparando a seta em seguida. Por reflexo, me encolhi usando o escudo para proteger meu rosto. Merida soltou um muxoxo. Parecia que o objetivo dela era me acertar.
“Fique quieto, Soluço!” Merida ralhou, disparando outra seta.
Suspirei e protegi meu rosto. A seta atravessou a madeira do escudo, parando próxima a ponta do nariz. Um estalar de dedos ecoou pelo ar e a flecha pegou fogo, fazendo com que eu arremessasse o escudo para longe, praguejando num tom baixo. Merida riu e eu a encarei com seriedade.
“Parece que seus poderes evoluíram.” Resmunguei chateado. “Você incendiou apenas a flecha e não o escudo inteiro.”
Merida sorriu satisfeita.
“Digamos que andei praticando. Mas, você. também evoluiu.”
“Eu só aprendi a controlar meus poderes.” Comentei, mandando, mentalmente, uma lufada de ar apagar o fogo. “Algumas vezes meu humor ainda interfere no tempo.”
“Já tentou fazer algo levitar?” Merida perguntou interessada, deixando suas armas de lado.
“Não. Você acha que posso fazer isso?”
“Claro! È só evocar o ar em torno de um objeto e fazê-lo flutuar.”
Ergui uma sobrancelha. Falando, parecia fácil, mas sabia que na prática as coisas seriam diferentes. De qualquer forma, deixei meus receios de lado e tentei fazer com que as flechas de Merida acertassem o escudo. As setas, que não paravam do outro lado da floresta, ou caiam na lagoa ou desapareciam no céu. Anoitecia quando uma flecha flutuou instavelmente e bateu no escudo, antes de cair no chão.
“Ah! Parabéns!” A ruiva gritou, agarrando-me pelo pescoço e beijando-me em seguida.
“Mas eu nem atingi o alvo...” Comentei confuso.
“Atingiu sim. A flecha se chocou com ele.” Merida retrucou, alegre.
Franzi a testa e fitei a ruiva, que riu e me deu um beijo na bochecha, antes de se afastar de mim para pegar suas armas. Aquilo me fez lembrar da noite anterior e dos pesadelos. Apoiei meu cajado em uma pedra e bem lentamente, me aproximei da ruiva que estava agachada de costas para mim, colocando as flechas caídas em sua aljava.
“Ruivinha...”
“Sim?”
“Ontem à noite...” Comecei hesitante, mas parei quando a mão de Merida congelou em sua aljava.
“Sim?” A ruiva repetiu num tom tranquilo.
Suspirei e passei a mão pelos cabelos, ficando nervoso por causa da reação de Merida. Olhando para o chão continuei:
“Seu pesadelo não era sobre Mor’du. Tinha outra coisa ali, era...”
“Era Ela.”
Levantei a cabeça e olhei para Merida, deixando minha mão pender ao lado do meu corpo. Eu não tinha ideia de quem era “Ela”, mas podia sentir que era alguém pior que Breu.
“Você tem certeza?” Sussurrei surpreso por encontrar minha voz.
“Absoluta.” Merida afirmou e se levantou, virando-se na minha direção. “Não posso explicar como, mas sei que era ela.” A ruiva elevou os olhos para as nuvens escuras do céu e continuou: “Tem algo ruim vindo. Algo que afetará a todos nós. E isso só vai ser o começo.”
Enlacei a cintura da ruiva e segurei seu queixo, fazendo-a olhar para mim.
“Eu não temo o futuro, por que eu sei que ainda estaremos juntos.” Disse confiante e sorrindo completei: “Afinal, a coragem que morre por último.”
Merida revirou os olhos e sorriu involuntariamente.
“É a esperança que é a última que morre, seu bobo.” Ela me corrigiu e eu a beijei como se fosse a última vez que eu pudesse fazer aquilo.
E como sempre, nosso beijo foi longo, caliente e apaixonado. Pois quando nos beijamos, a única coisa importante éramos nós. E o resto... bom, era resto.
“Já está tarde.” Merida disse, olhando-me nos olhos, enquanto seus dedos torciam o tecido de minha camisa.
O rosto dela estava tão vermelho quanto seus cabelos, e seus lábios entreabertos, eram uma tentação para mim, eu tinha que beijá-la. Como se lessem minha mente ela falou:
“Nem pense nisso.”
Fiz menção de beijá-la, mas ela virou o rosto para o lado.
“È sério, Soluço. Já está tarde e quanto mais demorarmos, mais difícil vai ser achar a trilha.”
“Eu posso andar por Berk de olhos fechados.” Falei, dando beijinhos na bochecha dela.
“Soluço Horrendous Haddock!” Merida reclamou, usando o mesmo tom que uma usaria ao chamar o filho pelo seu nome.
“Tá, vamos voltar para vila.” Resmunguei, me separando dela e a fazendo rir.
Peguei meu cajado e o fiz assumir a forma de um bracelete. Merida fez o mesmo com o seu e prendeu sua aljava na cintura, me dando seu braço em seguida. Seguimos de volta para vila aproveitando a brisa morna do verão. A noite não estava quente, mas não era tão fria como de costume. Merida suspirou. Um suspiro que era mais de preocupação do que de cansaço.
“Ainda preocupada com Ela?” Adivinhei e Merida assentiu. “O seu problema, ruivinha, é que você se preocupa demais.”
Merida fechou a cara. Eu a havia irritado.
“Você faz parecer que sou neurótica.” Ela reclamou.
Por que você é neurótica. Pensei em responder, mas como ainda queria viver, falei:
“Não é isso, ruiva. Mas é que eu já sobrevivi a muitas tragédias, o que me deixa pronto para elas. Agora, por que não relaxamos e tomamos um pouco de hidromel no salão comunal?”
Merida empacou onde estava. Suspirei e ao olhá-la vi que suas feições eram duras e seus olhos cheios de receio.
“Ruiva...”
“O que te fez cair dos céus naquela noite?”
Fiz-me de desentendido.
“Que noite?”
“Aquela que derrotamos Breu. Eu senti sua consciência se esvair por um momento, Soluço. Você quase morreu.”
Afastei-me de Merida e fiquei de costa para ela. É claro que eu me lembrava daquela noite, era ela quem preenchia meus pesadelos.
“Não. Eu realmente morri naquela noite.” Afirmei numa voz sem vida. “Breu enfeitiçou minha mente e me fez acreditar que Berk havia sido consumida pelas chamas. Foi demais para mim. Não tive mais vontade de viver e meu coração entendeu meu desejo.”
“Eu não sabia.” Merida sussurrou, visivelmente afetada pelas minhas palavras. Assim como eu podia sentir a dor dela, ela podia sentir a minha. “É com isso que sonha todas as noites? Esse é seu maior pesadelo?”
Fiz que sim com a cabeça e esperei um abraço de Merida, mas ele não veio. Olhei sob o ombro e a vi com uma mão no coração, tendo uma expressão de medo em seu rosto.
“O que foi?” Perguntei, segurando-a pelos ombros.
“Eu... não sei direito. Tive uma espécie de intuição. Sinto que algo ruim vai acontecer com a vila.” Ela respondeu e olhando no fundo dos meus olhos completou: “Melhor corremos... Agora.”
Imediatamente começamos a correr, nos embrenhando cada vez mais na escuridão da floresta. Acima de nós, a Lua cheia brilhava iluminando nosso caminho de volta para trilha. Corremos o mais rápido que conseguíamos, parando apenas quando chegamos ao centro da vila, onde havia um enorme poço antigo. Merida apertou minha mão com força e olhou para o céu como se esperasse algo. Ela esperou, esperou, esperou... E nada aconteceu.
“Eu não entendo.” Merida disse confusa. “Era para algo acontecer.”
“Talvez aconteça outra hora.” Especulei e Merida me olhou com raiva.
“Não. Era para acontecer agora.” Ela rosnou entredentes.
“Vai ver que...” Comecei a dizer e uma explosão ocorreu numa casa ao nosso lado. “Abaixa!”
A ruiva e eu nos agachamos e corremos para trás do poço. Olhei para céu, mas não vi nada. Outra casa foi incendiada, seguida por outra e mais outra. Eu não podia ver de onde partia os ataques e isso era estranho, por que o único dragão assim era um Fúria da Noite, porém seu tiro era uma bola de fogo azul e não uma cachoeira de fogo amarelo.
“Para o salão comunal!” Gritei para os vikings que corriam desesperados em busca de um abrigo. “Abriguem-se no salão comunal!” Me virei para Merida e puxei-a para mais perto de mim. “Vamos.”
Corremos de cabeça abaixada, atentos a todos os ataques da fera. Num dado momento, uma explosão ocorreu perto de nós, nos arremessando para longe.
“Você está bem?” Perguntei para Merida, que assentiu, enquanto eu a ajudava a se levantar.
Uma torrente de fogo veio em nossa direção. Merida olhou para ela e seus olhos ficaram vermelhos como o fogo. A corrente continuou vindo, então a ruiva ergueu as mãos na direção dela, mas ela continuou a avançar. Merida franziu a testa e eu me joguei em cima dela, levando-nos ao chão. O fogo se espalhou ao nosso lado e, ao olhar para Merida, vi que havia uma queimadura em seu braço. Eu e ela nos entreolhamos. Merida era imune ao fogo, exceto se ele fosse produzido por pesadelo.
“Vamos.” Sussurrei ofegante.
Merida e eu nos levantamos, continuamos a correr para o salão, sempre nos desviando do fogo inimigo, que parecia estar direcionado apenas para nós. Assim que chegamos ao salão comunal, vi que ele estava quase lotado. Graças aos deuses, o ataque começara na hora do jantar, o que significava que a maioria dos vikings estava fora de casa. Deixei Merida sentada em um banco e me aproximei de Bocão, que tentava acalmar o pessoal.
“Astrid e os outros já voltaram?”
“Não e não tenho nenhuma noticia deles. “ Bocão disse para mim e se virou para a multidão:
“Acalmem-se, nossos guerreiros já estão...” Ele se interrompeu e se virou para um ex-exilado da tribo de Alvin. “Dê um jeito nisso.”
O exilado sorriu e jogou um copo na cabeça de um viking. Imediatamente todos se calaram e o encararam assustados.
“Fiquem calmos! Aqui é um salão, não um leilão de porcos!” Ele reclamou com sua voz de trovão e os vikings começaram a discutir aos sussurros.
Retornei a mesa que deixara Merida e a vi derramando hidromel na sua ferida. O rosto dela estava contorcido em caretas, mas nenhum tipo de gemido escapava de seus lábios. Ao me notar, a dor desapareceu de seu rosto, dando lugar a preocupação.
“Soluço...”
As fogueiras do salão se apagaram todas ao mesmo tempo, fazendo o silêncio se instalar no ambiente. O cajado de Merida brilhou na escuridão. Ele era novamente dourado e emitia uma forte luz dourada de sua pedra. Como se sentisse aquela energia, meu cajado pulou para minha mão e assumiu a cor prata, emitindo uma forte luz azul de sua pedra. Sob a luz dos cajados pude ver os vikings nos olhando espantados. Parados entre eles estavam os pesadelos que Merida apelidara de carequinhas. Eles continuavam com os mesmos olhos brancos e o mesmo corpo negro, empunhando as mesmas espadas e lanças de metal escuro. Pareciam estar mais fortes do que da última vez e tomavam conta de todo salão.
Do meio da multidão, saiu um pesadelo que usava roupas de piratas e montava um corcel negro de olhos violetas. Apesar de todos os carequinhas serem iguais, eu reconheci aquele. Era o comandante da horda que me atacara no lago de Burgess. Um pesadelo que devia estar morto.
“Sentiu minha falta, Filho da Lua?”
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